terça-feira, 23 de agosto de 2011

Chinelo novo

Hoje caminhei sem mim:
(O poema começa assim.)

Andei por aí sem o meu corpo.
Só a cabeça listando a fila de pensamentos
em cada esquina.

Na rua me perco.
Na rua me encontro.

Espécie de autopunição vespertina
essa andança.

Andar não me cansa. Fato.

Cansaço é algo que só me derruba
quando julgo o dia uma perdição,
mas o dia não se perde;
o dia apenas passa
antes dos encontros.

Eu quero e preciso
do encontro com o belo.
Este dia passa amarelo
e sem rima.

(Acho que perdi os verbos do momento
antes do poema.)

Meus passos seguem
mais críticos do que nunca.

Vejo gente na rua que me dá pena.
Gente que engorda tanto em tão pouco tempo.
Eu não quero nem de longe
ser arrogante,
mas ando enxergando gado pelas calçadas.
Pronto, falei.

Ao mesmo passo que me cobro o sentido
da minha e de qualquer existência
cobro o ouvido dos outros
que não me escuta.

(Cicuta
para os nobres
fracassados!)

Acho que a rua é boa
porque mente.

Passo atento e ouço o que dizem
os doutores sem doutorados
com gravatas alinhadas
e carros importados.

Esse povo não me diz nada.
Sou um poeta surdo
pro que não é vital.

Chega a ser engraçado,
eu sem um trocado
no bolso;
rico de verso.

Diverso
é o coração do suicida.

Chega dessa vida...

E chega de brigar com o tempo.
Eu e o tempo somos
a mesma poesia:
Um início
com meios
sem fim.

É...
hoje estou assim
sem planos
para envelhecer.



Ígor Andrade

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2 comentários:

Anônimo disse...

Sem explicação pra o encanto e identificação que sinto com suas palavras. Diria que sou fã, mas teria que transformá-lo em ídolo, quando na verdade não quero que seja mais do que isso que você mesmo desconhece.

"Chega a ser engraçado,
eu sem um trocado
no bolso;
rico de verso.

Diverso
é o coração do suicida."

Todos os dias - e não um só - os meus pensamentos são atordoados ao contemplar da rua. Gados na rua. Andando com a cabeça e com os pés no chão, parados. Na verdade, é o pensamento que continua indo.

Obrigado pela riqueza da ilustração desse momento factual que vivemos num poema tão despretensioso, talvez por ti até declarado defeituoso; mas é que o defeito é que é a inspiração para a própria arte. O poema se iguala, e se torna mais artístico ainda quando representa o objeto tal qual o é.

Grande abraço.

Luiz Libório disse...

Grandioso.