segunda-feira, 23 de abril de 2012

A diária origem da linguagem



Todo dia tenho de ouvir de mim mesmo que sou uma criatura que se cobra demais. Eu quero criar mais do que respiro. Quando crio pouco não admiro, o que é admirável no mundo. Criar, seja lá o que for, é minha salvação. A cruz que carrego na vida. Talvez até a cobrança eterna do que nem sei. Uma andança interminável. Uma dança difícil de acompanhar. Eu me cobro muito. Eu me cobro mudo, e quase sempre é por não ter dinheiro, e só por isso me sinto mais vazio do que de costume. Tem algo muito errado nesse entendimento, e só estou falando de dinheiro porque hoje descobri que minha mãe precisa fazer uma cirurgia. Haja cifrão pra cuidar de um joelho sem coração. Uma fratura do platô tibial lateral, uma lesão condral, um discreto derrame articular, uma condropatia patelar grau III, um pequeno cisto de Baker e um edema difuso do tecido subcutâneo: eis a conclusão da ressonância. Ignorância: eis a conclusão da minha incompetência. Eu me sinto estranho quando falo muito; ridículo quando me calo; grosseiro quando respondo; enganador quando tenho uma idéia; e preguiçoso demais quando tenho sono. Eu me sinto egoísta agora só porque escrevi esta bobagem. Parece que a melhor idade de qualquer ser humano é aquela em que os joelhos funcionam bem. Parece que quanto mais falo do outro mais penso em mim. Ando preocupado com tanta coisa que nem sei mais como me cuidar. Minha imunidade caiu. Minha humanidade adormeceu. Minha utilidade sumiu. Minha realidade desapareceu. Hoje sofro com a inanição da palavra, e isso dói.




Ígor Andrade

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2 comentários:

Anônimo disse...

Gostei muito deste :D

Marcelino disse...

Já peguei em outros textos teus essa marca do fazer-se pouco (inanição da palavra)sendo tão bom: este texto está ótimo: a linguagem médica, a assonância (ressonância/ignorância), aquele trecho que diz sentir-se estranho quando fala muito, ridículo quando se cala, etc, etc. Tudo perfeito, muito perfeito para uma inanição da palavra.