sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Agostiniando a tarde


Inspirar dó
é expirar dor.
Respirar só.


Ígor Andrade

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quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Fatos alheios


Todo dia há um nó e um desenlace. Nasce quem tem de nascer: laço. Morre tudo que estar por vir: cansaço. Amasso a folha de papel e tento outra vez o pensamento. Lento! Todo dia há um nó e um desenlace. O nó consiste em acordar. Abrir os olhos para dentro. E só aí perceber que viver é esse estranho ser do lado de fora... de algo. (Outra hora falo mais sobre isso, que também não entendo.) O desenlace é difícil - é tentar dormir... mais uma vez. Todo dia há um nó e um desenlace. Passe meia hora repetindo esta frase para si mesmo e veja que "o si mesmo" não pára nesta frase. Todo dia há um nó e um desenlace. No meio disso tudo, o epílogo de qualquer nada, que também acaba.


Ígor Andrade

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terça-feira, 23 de outubro de 2012

Toca o telefone do meu vizinho


Toca o telefone do meu vizinho.
Ninguém atende.
Ninguém entende
o que tem de atender.

O que tem de ser entendido
às vezes é esquecido
por alguma surdez.

Um pedido:
silêncio.
Parece muito.

Parece pouco:
o que peço.

Só queria ler meu livro na varanda
sem o toque de um telefone.
O nome disso é velhice.
O resto é só a tarde.

A mesma tarde que passa...

Onde estão todos, que não atendem?
Onde estou eu, que não entendo?

O toque do telefone é esperança.

Alguém quer ser atendido.
Ser entendido é outra história.


Ígor Andrade

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sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Terapia do cão


Escrevo para não
enlouquecer
o outro.


Ígor Andrade

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quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Libelo


O sonho do sábio.
O sonho do louco.
Quem sonha pouco?


Ígor Andrade

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terça-feira, 16 de outubro de 2012

E hoje ainda tinha dentista


Numa xícara de café
encontra-se pesadelos.
Portas que se fecham
no escuro do dia.

Desenho um plano empresarial
pra enganar meu filho
que ainda não nasceu.
O que cresceu na madrugada
sumiu.

O infinito da janela
é um quadro que não sei pintar.
A suadeira nas mãos
que não controlo.

Ao nada invejo a insensibilidade
dos bancos das praças.
Muita história e muito frio.

Meu mundo é um esboço apagado.
Peso no dorso de um homem afogado
na superfície das coisas.

Confesso que tenho medo
do sono da tarde.


Ígor Andrade

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quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Primeira lei da termodinâmica


Uns aprendem a ouvir. Outros aprendem a escrever. O ouvido de um é o olho do outro. Há de se prestar atenção no que realmente faz sentido. Tenho sentido falta do que é real. Muitos lunáticos fanáticos apopléticos. A estética venceu a ética. Poética pobre sem pôr do sol. Acordei proparoxítona e esqueci do arrebol. Bem ou mal, sentir é descoberta abismal. Janela aberta pro quintal, da alma. A falácia do homem livre pede calma, mas eu nem ligo. O inimigo da escrita é a surdez. Outra vez, descubro a cegueira das mãos. Quem somos enquanto não temos? O que vemos quando não sentimos? Saber ouvir antes de responder, saber escrever antes de sentir; saber ser divino. A plenitude se disfarça num sorriso de canto. Outro encontro. E fim de conversa. Que pressa é essa que nós vivemos? Ainda sou do tempo em que o tempo não se preocupava com o tempo. Muito vento e poucos tantos. Esperanto no silêncio da noite. Somos servos da ignorância. Cervos com uma profunda ânsia de contemplar os leões. Sermões sem ser mães. O diabo entende do solo melhor que o pastor. O pavor de quem escreve está no colo da dislexia. Vou morrer acreditando que harmonia é a teimosia de um aleijado; quando falta algo a vida cria significado.


Ígor Andrade

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terça-feira, 2 de outubro de 2012

Café gelado


O sentido da hora chora.
Nasce agora outro alguém
em algum lugar.

Tudo fora
e eu no meio
a sussurrar pegadas.

Foi-se embora o dia.
Ninguém mais saberia acordar.

Fim - mas começo.
Eu começo
a acreditar em outras coisas.
Mais tarde estará mais fresco.

Aurora distante.
(O que quero eu exatamente dizer?)
Uma gata no cio desespera os telhados.
Hoje ninguém vai dormir.

O homem é mesmo um bicho muito doente.
Se muito fala muito sente.
O presente dos deuses talvez seja silenciar matutices.

Uma dor de barriga sagrada
na madrugada.
O médico do tempo é o interior.


Ígor Andrade

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